Revolução Ozempic: do retorno da busca pela magreza extrema às mudanças nos hábitos de consumo
Criado para o tratamento da diabetes, o Ozempic rapidamente caiu nas graças do público em geral pela promessa de rápido emagrecimento. Mas está causando uma revolução…
Nos Estados Unidos, um em cada oito adultos já usou Ozempic ou algum similar. Só no último trimestre de 2022, foram mais de 9 milhões de doses prescritas. Embora a existência de um medicamento como esse possa parecer um alento em um país em que quase metade da população é obesa, o que vemos, na realidade, é uma indústria milionária se formando às custas da insatisfação corporal e de uma nova onda de distúrbios de imagem especialmente entre os mais jovens.
No ano passado, a Novo Nordisk, farmacêutica responsável pelo Ozempic e pelo similar Wegovy, ultrapassou em US$ 5 bilhões o valor do conglomerado de moda LVMH, tornando-se a empresa mais valiosa da Europa. E as cifras não se restringem a ela: estima-se que esse mercado deva ultrapassar US$ 100 bilhões até 2030. Só nos EUA, a previsão é de que o mercado de obesidade atinja US $44 bi nesse mesmo prazo, um aumento de 8700% em relação a 2020¹. 🤯 Além dos medicamentos já existentes no mercado, mais de 70 novas drogas similares já estão em desenvolvimento.
A perda de peso causada pelos medicamentos é tão grande que as companhias aéreas já falam em economias milionárias em combustível. Só a United Airlines economizaria US$ 80 milhões por ano, caso o peso médio dos passageiros caia cinco kilos.
Uns ganham, uns perdem, todos tentam se adaptar
Nos Estados Unidos, os usuários de GLP-1 (hormônio que age na regulação da fome, e que Ozempic e medicamentos similares simulam) estão reduzindo seus gastos com supermercado em 9%. Nos restaurantes, o prejuízo pode ser de até US$ 25 bilhões em um ano.
Obviamente a indústria alimentícia está preocupada… “Pessoas que tomam medicamentos GLP-1 comem menos calorias. Isso não é bom para pessoas que vendem calorias”, disse Donny Kranson, gerente e analista da Vontobel Asset Management.
De empresas que fazem refeições prontas aos gigantes da indústria, todos estão abocanhando este mercado. A Nestlé, depois de desenvolver lanches voltados para os usuários, lançou um site focado neste público. Com a marca praticamente escondida, o site, recheado de "dicas de especialistas", vende um sem fim de suplementos voltados para combater os efeitos colaterais, como perda de massa muscular, queda de cabelo, problemas estomacais, vômitos e desidratação.
A promessa desses medicamentos continuarem interferindo em muitos mercados é tanta, que a Mintel e o WGSN, duas das maiores empresas de pesquisas e previsão de tendências do mundo, já têm fornecido orientações para os mercados se adaptarem a esse movimento. No SXSW (um dos maiores expoentes de inovação da atualidade) deste ano, o assunto também foi destaque.
Mudam os corpos, muda a moda
Com relatos de que os clientes estão vestindo "tamanhos menores do que em qualquer outro momento dos últimos 15 anos", o mercado tem tentado se adaptar. De roupas ajustáveis ao lançamento de tamanhos menores, todos estão correndo contra o tempo para não ficarem de fora. Até porque o prejuízo precisa ser recuperado: US$ 20 milhões por ano é a perda estimada nesse mercado. Como as compras de moda são feitas com um grande período de antecedência, um mercado que vendia majoritariamente 46 a 58 viu seu consumidor passar a vestir 34 a 42 - e as peças grandes começaram a sobrar nos estoques.
Quem se deu bem com esse processo foi a Universal Standard, com seu programa Fit Liberty [https://www.universalstandard.com/editorials/fitliberty]. Entendendo que o corpo das clientes mudam muito, eles criaram essa linha onde, em até um ano, a roupa pode ser trocada por outra igual, em tamanho menor ou menor. Até o ano passado, haviam 40 modelos disponíveis nesta modalidade. Agora são 400!
Um dos efeitos colaterais temidos nesse processo é o imenso descarte de roupas que possa acontecer - problema que, hoje, já é gigante. Como um dos efeitos colaterais do emagrecimento rápido é a recuperação do peso perdido em seguida, o receio é que as pessoas descartem suas roupas grandes, comprem menores e, posteriormente, descartem as roupas menores para voltar a comprar roupas maiores. Esperamos que pelo menos o mercado de roupas de segunda mão absorva parte desse ciclo…
O corpo magro como símbolo de status
É claro que algo tão revolucionário não está ao alcance de todos. No Brasil, o tratamento com Ozempic custa pelo menos dois salários mínimos por mês [cada caneta custa pelo menos R$ 700, e as aplicações são semanais] - e a nova onda é o Moujaro, ainda mais potente e quatro vezes mais caro.
Com preços tão altos, a magreza torna-se um símbolo de status. Praticamente um acessório de luxo. Algo a se ostentar. É o corpo como mercadoria.
Em uma matéria chamada The Economics of Thinness (a economia da magreza), o The Economist conta que, nos países mais ricos, a magreza feminina está diretamente relacionada à riqueza. Quanto mais ricas, mais magras são as mulheres. O gráfico dos ganhos em relação à magreza cresce na mesma proporção que eles crescem em relação à formação superior. 🤯 O mais interessante é que essa mesma lógica não se aplica aos homens. (Não que estejamos surpresas…)
A questão é: quanto tempo essa moda vai durar? Segundo a Goldman Sachs, graças à queda de preços causada pela quebra de patentes, até 2028 cerca de 70 milhões de consumidores ao redor do mundo estarão usando medicamentos similares. Qual será o novo padrão imposto, quando este se tornar acessível a todos?
Lembrando que nem sempre a magreza foi objeto de desejo…
Mas desde sempre foi necessário ter ou gastar dinheiro para se sentir desejável…
Como disse a pesquisadora de tendências Fah Maioli, "seu corpo nunca será belo". A economia da magreza "não gosta do body positive porque ele ameaça seu mercado. Grande e lucrativa (avaliada em US$ 192 bilhões), ela prospera no ciclo vicioso que muitas estão".
E as mentes por trás desses corpos?
Depois da obsessão com a magreza nos anos 90 e nos anos 2000, parecia que havíamos superado isso.
Na última década, vimos mensagens de body positive e corpos diversos invadindo as redes sociais, os desfiles de moda e as campanhas publicitárias. Mas como a aceitação não dá dinheiro nem promove obediência, o mercado já dá passos atrás nessa inclusão, à medida que a magreza volta à moda com o uso destes medicamentos.
E, ao que tudo indica, quem mais sofre com isso são os mais jovens: 31% da Geração Z e 32% dos Millennials dos EUA dizem que só o fato de saber que Ozempic existe faz com que sintam mais pressão para perder peso. Não é de se surpreender, já que no Tik Tok, a rede social preferida deles, as visualizações dos conteúdos relacionados ao assunto passaram de 1.5 milhão para mais de 500 milhões em cerca de um ano. E o problema não está só no remédio: têm crescido na plataforma os conteúdos pró-anorexia - e os riscos psicológicos dessa exposição são altos, apontam estudos. Tanto que a própria rede tem buscado controlar a exibição de postagens sobre perda de peso para os mais jovens. O problema é que os estímulos vêm de todos os lados, e infelizmente a demanda existe. "O peso é um assunto delicado, mas é o que os espectadores querem", disse a TikToker que foi banida por promover a anorexia.
(Informação importante: enquanto eu pesquisava o assunto para produzir esse conteúdo, fui impactada por conteúdo pró-anorexia no Instagram. O algoritmo é rápido!)
Nunca foi sobre saúde
Se por um lado, algumas academias de luxo já estão ofertando os medicamentos de GLP-1 combinados a exercícios, o avanço desses medicamentos trazem um outro lado da moeda. A rede de academias Blink Fitness recentemente declarou falência, e algumas matérias apontam que o mercado fitness norte-americano tem enfrentado problemas, já que as pessoas estão trocando os exercícios físicos por remédios para emagrecimento. No lado de cá, outro dado surpreende: o quarto item mais comprado junto ao Ozempic nas farmácias brasileiras é o sorvete Kibon. Não exatamente um símbolo de quem busca saúde…
Sem dúvidas, esses medicamentos são um alento para pessoas obesas e com questões de saúde que dificultam a perda de peso (eu mesma tenho resistência insulínica e hipotireoidismo, e sei o quanto muitas vezes é sobre qualquer coisa menos força de vontade). Até porque todos sabemos que, seja pelos olhares de julgamento, seja pelas catracas de ônibus, poltronas de avião e até mesmo equipamentos médicos pequenos e frágeis, sabemos que a nossa sociedade não está pronta para a existência de corpos gordos, não importa o quão saudáveis eles possam ser.
O problema é o uso indiscriminado por quem não precisa (como a influenciadora Carol Tilkian, que relatou ter tomado Ozempic mesmo pesando apenas 51 kilos e sendo visivelmente muito magra, ou a modelo Lottie Moss, que convulsionou devido a uma overdose de Ozempic) e o efeito dominó que eles causam na sociedade.
Efeito dominó
Os efeitos colaterais do uso dos medicamentos de GLP-1 têm gerado uma crescente busca por um sem fim de outros medicamentos, produtos e procedimentos estéticos. Cosméticos e tratamentos para queda de cabelo e preenchimentos faciais, liftings e proteínas para a perda de massa muscular ou flacidez causada pela perda rápida de peso são alguns dos exemplos. É um ciclo vicioso que acontece ao descobrir que novas insatisfações estéticas vão surgindo à medida que o peso vai se esvaindo.
Seja para quem não pode pagar ou por quem tem medo dos efeitos colaterais de longo prazo ainda desconhecidos, surge também uma onda de alternativas naturais a esses medicamentos. Da versão à base de cannabis aos nutricionistas que vendem via Instagram fórmulas para manipulação, as variantes só reforçam a demanda existente.
Tão existente que, nos próximos meses, o medicamento deve entrar na lista de faltas das farmácias de todo o mundo, pois a indústria afirma não ser capaz de suprir a demanda. Causando, inclusive, a falta para quem mais precisa.
Lucro pra alguns, esperança para outros, angústia para outros tanto. Mas uma coisa é certa: precisamos estar sempre alertas, porque a sociedade (e o mercado!) está sempre pronta pra retroceder, voltando várias casas em valores e causas que muito lutamos para evoluir.
¹ WGSN (informação contida na área de assinante, por isso não tem link)